A Itália que viaja no tempo






O Brasil é o país que apresenta o maior número de descendentes italianos no exterior. Porém, dependendo do período em que eles chegaram por aqui, as cidades brasileiras absorveram a cultura italiana de maneira diferente. De Curitiba, o cônsul italiano Salvatore Di Venezia comenta um pouco destas diferenças. Na capital paulistana, o podcast “Buongiorno San Paolo”, produzido por italianos, transmite uma Itália atual para os conterrâneos que chegaram por aqui nos últimos anos


Texto: Roberta Gonçalves
Fotos: Gillo Brunisso, / Divulgação




SÃO PAULO E CURITIBA, 30/05/2022

Sabia que 15% da população brasileira é formada por descendentes de italianos? Fornecida pela Fondazione Migrantes, responsável pelo Rapporto Italiani nel Mondo, esta estatística equivale a cerca de 30 milhões de pessoas, fazendo do Brasil o país com o maior número de descendentes de italianos no exterior. Porém, a cultura italiana por aqui pode se mostrar de formas distintas em cidades como São Paulo e Curitiba, que receberam ondas diferentes de imigrantes nos últimos tempos. Só entre os anos de 2000 e 2015, teriam chegado em torno de 30 mil novos imigrantes no Brasil, o que é considerado a terceira onda de imigração da História. A primeira aconteceu no final no século XIX. A segunda veio logo depois da Segunda Guerra Mundial. Os dados são do Projeto Nuovi Arrivati (Recém-chegados), desenvolvido pelo Comitê dos Italianos no Exterior de São Paulo (Comites-SP).

Alessandro Gaini, um produtor de conteúdo toscano que hoje vive entre Florença e São Paulo, é um daqueles que chegaram por aqui nesta terceira onda imigratória. Encantado pela cultura italiana paulistana, ele produz o “Buongiorno San Paolo”, uma plataforma ítalo-brasileira de conteúdo digital (podcasts, vídeos e redes sociais), com pautas sobre negócios, gastronomia, turismo e cultura.






Alessandro Gaini, produtor de conteúdo digital. Foto: Divulgação







Recentemente, para descobrir um pouco mais desta “italianidade espalhada pelo Brasil”, Gaini gravou um episódio especial de seu podcast, o “Buongiorno Curitiba”, onde recebeu o cônsul italiano do Paraná e de Santa Catarina, Salvatore Di Venezia. Por lá, o diplomata contou sobre as novidades para este ano, como o “Mia Cara”, evento que celebra a cultura italiana no Paraná e em Santa Catarina, além de falar de negócios e da presença de empresas italianas nos dois estados. Já o fotógrafo Gillo Brunisso, italiano do Friuli que viveu alguns anos em São Paulo e hoje trabalha na capital paranaense, participou do “Buongiorno Curitiba” contando um pouco da sua experiência nas duas cidades, além da “visão de estrangeiro” que lhe permite enxergar uma Itália diferente daquela onde nasceu e cresceu.








Alto nível de excelência das pizzas de São Paulo se equipara àquelas da Itália








Para Alessandro Gaini, São Paulo apresenta uma cultura italiana mais atual, comparada a outras cidades da região sul brasileira:
– Dez anos atrás, não se via a Itália contemporânea por aqui. Era uma imagem mais folclórica e tradicionalista. Mas, de uns cinco anos para cá, acho que a coisa começou a mudar. Em São Paulo, já dá para saborear pizzas de excelente qualidade, muito próximas àquelas que comemos na Itália – analisa.

Di Venezia – que já atuou como vice-cônsul em São Paulo, entre 1988 e 1994 – observa que o fato de a cidade paulistana ter recebido uma onda imigratória mais recente (aquela entre os anos 2000 e 2015) possibilitou esta “modernização” da cultura italiana por lá:
– A imigração do Paraná foi até o final do século XIX. De lá pra cá, não houve números expressivos de novos italianos. Mas isso permitiu a Curitiba conservar uma memória fundamental da gastronomia e da arquitetura da Itália, principalmente do Vêneto, em lugares como Santa Felicidade – destaca Di Venezia.

O bairro de Santa Felicidade é uma espécie de Little Italy da capital do Paraná. Por lá, os turistas encontram a arquitetura dos primeiros imigrantes italianos, no final do século XIX, como a Casa dos Gerânios ou a Paróquia de São José e Santa Felicidade. O bairro guarda passagens históricas como o surgimento do comércio local, além das atividades de marcenaria para a fabricação das “barricas” de vinho e técnicas pioneiras para beneficiamento do milho no Brasil, que produzia a polenta branca, no Moinho Boscardin.






Paróquia de São José e Santa Felicidade e Casa dos Gerânios. Foto: Divulgação









O cônsul lembra que as autoridades locais do estado, como o governador do Paraná e o prefeito de Curitiba, também descendem de famílias italianas. Este “sangue italiano que corre nas veias” do Paraná e de Santa Catarina foi atestado em 2021, por uma pesquisa de medicina genômica divulgada pela revista Veja. O estudo – que investigou o índice de DNA italiano na população das regiões Sul e Sudeste do Brasil – apontou Santa Catarina (17%) e Paraná (16,6%) entre os estados com estatísticas mais significativas, praticamente empatados no segundo lugar. O pódio do ranking ficou com as capitais de São Paulo, Espírito Santo e Rio Grande do Sul (17,7%). A pesquisa foi feita pelo equipe do Genera, laboratório de genética e ancestralidade localizado em São Paulo.

Salvatore Di Venezia reconhece, contudo, que Curitiba também recebe influência de outros países, como a Ucrânia e a Polônia. Em geral, observa que a capital do Paraná é uma cidade pouco brasileira, incluindo o clima frio, comparado ao resto do país:
– Quando levanto de manhã e vejo o céu cinza, me sinto logo em Londres ou Bruxelas – brinca. Já as recordações de São Paulo o fazem se sentir mais perto de Nápoles, sua terra natal:
– É quase como estar em casa. Ainda hoje, para mim, que nasci no sul da Itália, é mais fácil me adaptar a São Paulo do que a Milão. Sem contar o café, que é muito bom. Levei alguns desses blends do Brasil para meus amigos napolitanos, e eles gostaram muito”, afirma.

Outro que passou pela experiência de diferentes culturas italianas no Brasil é o fotógrafo Gillo Brunisso que, da mesma forma que Alessandro Gaini, chegou por aqui com a terceira onda imigratória. Brunisso já viveu alguns anos em São Paulo e atualmente mora em Curitiba:
– Vinte anos atrás, quando cheguei, minha primeira impressão do Brasil foi a visão aérea de São Paulo. Lá de cima, os imensos arranha-céus da cidade me impactaram profundamente – recorda-se.






Autorretrato do fotógrafo Gillo Brunisso.










Commedia dell´Arte diverte o público curitibano e exalta a cultura italiana no setor de entretenimento






Em Curitiba há mais de uma década, o fotógrafo também curte a atmosfera histórica de bairros como Santa Felicidade, incluindo a gastronomia e a arquitetura sacra. Porém, na capital do Paraná, há uma outra marca italiana que desperta mais sua atenção: a tradição da Commedia dell´Arte, um teatro popular de improviso, que nasceu na Idade Média, servindo de referência para muitos gêneros atuais. Em Curitiba, o grande propagador desta arte foi o diretor italiano de teatro Roberto Innocente. Natural de Pádova, ele viveu no Paraná por muitos anos. Mas, infelizmente, foi mais uma vítima fatal da pandemia. Innocente criou o grupo Arte da Comédia, onde mesclava personagens típicos da Commedia dell´Arte com a cultura brasileira, deixando um importante legado cultural para a cidade. Uma de suas peças, “Janaína, não seja boba", de 2019, mostra bem este formato teatral ítalo-brasileiro. Brunisso se lembra com saudade desta experiência:
– Era um pedaço da arte italiana em Curitiba, e suas peças eram divertidíssimas. Tive o prazer de assistir a muitas delas. Espero que sua equipe dê continuidade a este incrível trabalho – declara.






Cena da peça “Janaína, não seja boba”. Foto: Gillo Brunisso







Mas, Brunisso não vê apenas diferenças na cultura italiana entre São Paulo e Curitiba. Hoje, quando volta a seu país natal, como fotógrafo, ele descobre uma Itália diferente daquela onde nasceu e viveu grande parte de sua vida: “O olhar é outro. Sinto como se redescobrisse um país que, antes, não enxergava. Muitas vezes, a correria do dia a dia nos impede de valorizar a arte, a história e a cultura de onde vivemos, e isso vale para qualquer lugar", afirma.

Já no Brasil, quem quiser conhecer a verdadeira Itália poderá fazer uma imersão cultural, artística e gastronômica no “Mia Cara”, que acontece há dez anos no Paraná e em Santa Catarina, exaltando a cultura italiana na região sul. Este ano, o evento que vem com a mensagem “Salute a tutti” (Saúde para todos) rola entre 2 e 11 de setembro, nas cidades de Curitiba e Colombo (Paraná), além de Florianópolis, Criciúma e Jaraguá do Sul (Santa Catarina), em formato híbrido. As atrações incluem festivais de cinema, teatro, danças folclóricas, apresentações musicais, exposições, ações de gastronomia, turismo e esportes. Enquanto aguarda a programação oficial, o público pode ir curtindo as atrações de pré-evento, entre 27 de maio e 8 de junho, como as apresentações da Orquestra de Câmara da Cidade de Curitiba e o 1º Torneio Misto de Bocha. Acompanhe o calendário completo pelo site oficial do “Mia Cara”,






Imagem de divulgação


Di Venezia ressalta que o objetivo do “Mia Cara” é mostrar não apenas o folclore italiano, mas também a Itália de hoje, trazendo músicos e atrações atuais: “É um momento de união e celebração. Este ano, voltamos às apresentações presenciais, com colaboração tanto da iniciativa privada quanto da iniciativa pública, o que mostra a importância do evento”, enfatiza.










Santa Catarina e Paraná atraem empresas italianas e lideram ranking de qualidade de vida






O cônsul italiano lembra que a iniciativa privada do Paraná e de Santa Catarina é marcada também pela importante presença das empresas italianas, contando com apoio do governo local, sobretudo, nos setores de agropecuária, portuário e têxtil. Com um forte setor metal-mecânico, essas empresas costumam prestar serviços à montadoras automotivas instaladas no Paraná, como Renault e Volvo.

Outra força produtiva do estado é o segmento de agronegócio, visto que o Paraná é considerado um dos grandes celeiros do Brasil, principalmente, no cultivo e beneficiamento da soja e de outros grãos. Di Venezia salienta ainda a vocação de Santa Catarina nas indústrias têxtil e náutica, com cidades como Joinville e Jaraguá do Sul, repletas de empresas italianas. Já o setor supermercadista de Curitiba tem grande apelo para o made in Italy, com intensa procura pelo setor de importação de produtos italianos:
– Alguns supermercados importam esses produtos da Itália e inserem a própria marca. São itens como tomate sem pele, massa de macarrão e alimentos em conserva. Neste contexto, é importante reconhecer a pró-atividade da Câmara Italiana de Comércio e Indústria de Santa Catarina e, em Curitiba, o desempemho de Francesco Pallaro, que também tem feito um belo trabalho na Câmara Ítalo-brasileira de Comércio e Indústria do Paraná. Estamos abertos às empresas italianas interessadas em conhecer melhor não só a potencialidade industrial destes dois estados, mas também a qualidade de vida – convida. Um recente levantamento sobre as melhores cidades para se viver na América do Sul, encomendado pelo portal Tourist Maker, mostra Florianópolis na liderança do ranking, além de Blumenau e Curitiba, que também aparecem entre as cidades mais bem colocadas.






Salvatore Di Venezia, cônsul-geral do Paraná e de Santa Catarina. Foto: Assessoria







Entre os desafios de sua atual gestão frente a Santa Catarina e Paraná, Di Venezia reforça a otimização da estrutura consular, racionalizando o trabalho e simplificando os processos, mesmo operando com uma equipe reduzida. No momento, a grande expectiva da comunidade italiana desses dois estados volta-se para a nova sede do Consulado Italiano em Curitiba, com inauguração prevista para setembro. A ideia é oferecer um espaço mais confortável para os ítalo-brasileiros, incluindo espaço para realização de eventos. Agora que a pandemia “deu uma trégua”, o cônsul também pretende percorrer mais pontos catarinenses e paranaenses, para conhecê-los melhor e propagar a italianidade em diversas frentes, não só nas esferas econômica e comercial, mas também no âmbito cultural:
– Depois desta gestão, encerro minha carreira diplomática e me aposento, certo de que cumpri minha missão da melhor forma possível – avalia.

Na verdade, um país de cultura e história tão vastas como a Itália pode se apresentar de diversas formas, conduzindo a várias épocas e cumprindo diferentes missões. Se quiser, é possível embarcar em uma viagem no tempo pelas casas de madeira do final do século XIX, no bairro de Santa Felicidade, em Curitiba. Outra opção é ficar por aqui mesmo, nos anos 2000, curtindo uma Itália mais business e tecnológica, que se atualiza com veículos como o podcast “Buongiorno San Paolo”, apresentado pelo toscano Alessandro Gaini, depois de saborear sua autêntica pizza ítalo-paulistana. E existe ainda o Bel Paese que os próprios italianos não veem, como descobriu o fotógrafo friulano Gillo Brunisso:
– É um país esculpido pela arte secular de artesãos da Puglia ou pelas mãos habilidosas do construtor de gôndolas de Veneza. Testemunhar o relato emocionado dos meus conterrâneos me mostra que podemos viver a vida inteira em um lugar sem nunca conhecê-lo de verdade – conclui.








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