O (duro) aprendizado da pandemia: De Masi reflete sobre os riscos globais
A pandemia continuará nos assombrando enquanto toda a população mundial não estiver imunizada e os países ricos não mudarem sua mentalidade. Esta é uma das perspectivas pelas quais o escritor italiano Domenico De Masi analisa a situação que vivemos. Neste bate-papo, ele também fala da explosão do home office, das lições desta crise e lembra da amizade que tinha com Oscar Niemeyer e Jaime Lerner
Entrevista: Roberta Gonçalves e Gillo Brunisso
Fotos: Gillo Brunisso
ROMA, 19/06/2021
Nunca se falou tanto em administração do tempo e do trabalho como nesta pandemia. A rotina dentro de casa – com atividades profissionais, sociais e recreativas – obriga as pessoas a repensarem suas prioridades e, para muitas, gera angústia e desgaste. Da Itália, o sociólogo italiano Domenico De Masi fala com exclusividade para o Jardim Italiano sobre temas como home office, ócio criativo e relembra um encontro inusitado no passado, com os célebres arquitetos brasileiros Jaime Lerner e Oscar Niemeyer, na Itália.
Dentre as lições deixadas pela pandemia, De Masi destaca a importância de um Estado democrático forte, da saúde pública e da necessidade de tolerância das pessoas a situações drásticas de sobrevivência. Também fala da explosão do home office durante a pandemia, que acelerou a adoção do teletrabalho globalmente. Neste contexto, observa que o ócio criativo encontra terreno fértil, uma vez que é preciso combinar trabalho, vida social e família no mesmo ambiente.
No combate à pandemia, alerta que, se apenas os países ricos se vacinarem, a crise pode nos assombrar por muito mais tempo. Do Brasil, recorda-se com carinho e menciona amigos que fez por aqui, citando um encontro inusitado em Ravello, na Itália, com os arquitetos Jaime Lerner e Oscar Niemeyer.
Jardim Italiano – Da última vez que nos encontramos, o senhor mencionou sobre a tendência do teletrabalho para o futuro, entre outros argumentos. Hoje, com a pandemia, o home office é muito presente. Podemos dizer que esse futuro chegou antes do que esperávamos?
Domenico De Masi –
– Acho que a pandemia apenas acelerou a adoção do teletrabalho. Venho falando dessa possibilidade há praticamente 30 anos. Mas as empresas sempre se mostraram muito resistentes à reestruturação dos serviços para implantar o teletrabalho. Com a pandemia, tiveram que rever esta questão e tudo se acelerou. Na Itália, em 1 março de 2020, havíamos uma marca de 570 mil pessoas que atuavam com teletrabalho. Em 10 de março, esse número saltou para 7 milhões. Em 10 dias, houve um aumento maior do que nos 20 anos anteriores.
JI – Mas o senhor acha que as empresas estão preparadas para adotar o teletrabalho definitivamente, sobretudo, no que se refere à estrutura e equipamentos necessários?
DD
– A única coisa que não está preparada é a cabeça daqueles que ocupam os cargos de chefia. Está tudo em ordem: tecnologia, leis e trabalhadores prontíssimos. Em um ou dois dias, todos se habituaram ao smart working, exceto seus chefes, principalmente, aqueles do setor de Recursos Humanos. Estes são os mesmos de antes da pandemia e, certamente, farão de tudo para levar os funcionários de volta ao espaço físico da empresa depois desta crise.
JI – “O tempo é uma criança que brinca”. Esta frase, do filósofo Heráclito, mencionada em seu discurso de 2019, no Brasil, fala sobre o complexo conceito do tempo, de acordo à época em que vivemos. Hoje, com o isolamento social, as pessoas ficam mais tempo em casa, misturando trabalho, família, vida doméstica e diversão. Este cenário gera ansiedade e angústia para muitas pessoas. Como organizar o tempo em uma situação tão complexa? Esta frase de Heráclito ainda é pertinente para os dias atuais ou deveria ser adaptada?
DD
– Heráclito está coberto de razão (risos). Imagine como o tempo brincou com a gente até agora? Um ano e meio atrás, jamais teríamos imaginado esta pandemia, além disso, havíamos muito mais espaço. Eu, por exemplo, pegava o avião quase toda semana. Viajava para a França, os Estados Unidos, o Brasil. A gente se movimentava também de trem, de navio, enfim, o espaço era infinito. Porém, o tempo era escasso, porque gastávamos grande parte dele nesses trajetos. Hoje, vivemos exatamente o contrário: temos muito tempo, mas pouco espaço. Por uma questão de segurança sanitária, somos obrigados a cumprir isolamento em casa, com espaço físico restrito e tempo de sobra. É como se, durante este período, estivéssemos participando de um longo congresso residencial, no qual o grande professor é o Corona Vírus. Nestas “aulas”, ele demonstrou a relevância da relação tempo e espaço. Também nos ensinou que, em um mundo globalizado, bastam poucos dias para o vírus passar de uma lado ao outro do planeta. Apontou a diferença entre as coisas realmente necessárias e as coisas supérfluas. Evidenciou que, durante as crises globais, aumentam as desigualdades: os ricos se tornam mais ricos, e os pobres ficam mais pobres. Mostrou quem são as pessoas mais fracas, que são as vítimas principais em situações críticas: idosos, solteiros, informais, clandestinos, moradores de rua. Revelou que, sem um Estado sábio e democrático, os cidadãos são largados à própria sorte. Explicitou a importância do sistema público de saúde. Na Itália, os sistemas de saúde são gratuitos para todos. Nos Estados Unidos, precisam ser pagos pelos usuários. Por isso, aqui, os pobres foram tratados como ricos. Enquanto lá, muitos morreram. O vírus nos ensinou ainda a importância do funcionalismo público e da saúde pública. Aqui, a saúde pública resolveu tudo, enquanto aquela privada se mostrou completamente ausente. Destacou a necessidade do trabalho voluntariado que ajude aos demais. Mostrou a relevância da competência e da ciência . Revelou que é difícil tomar decisões, seja na esfera governamental ou familiar. Indicou a importância da tolerância em situações difíceis e da comunicação precisa para reagir imediatamente às exigências da pandemia.
JI – É realmente uma lista ampla de tudo o que a pandemia está nos ensinando. Mas será que estamos aprendendo?
DD
– O aprendizado depende de alguns fatores. Um deles é o tipo de professor e, neste caso, o Corona Vírus foi um professor muito severo, porque nos puniu com a morte. Mas precisamos considerar ainda a inteligência e a vontade de quem aprende. Portanto, esse aprendizado não depende apenas do professor, mas também dos alunos. E estamos falando de variados tipos de alunos.
JI – O senhor acha que os alunos foram suficientemente humildes para aprender?
DD
– Os humildes continuam humildes, e os soberbos continuam soberbos. Acho que, depois desta grande aventura, as pessoas qualificadas se tornarão ainda mais ricas de virtudes. Já aquelas insensíveis se tornarão ainda mais insensíveis. Os bons serão melhores. Os ruins serão péssimos.
O neoliberalismo e a desigualdade social no mundo
JI – A pandemia é vivida de diferentes formas pelas pessoas. Os mais abastados viajam para resorts paradisíacos e se isolam em um mundo perfeito. Alguns trabalham em casa (home office) e vivem a angústia do enclausuramento. E há aqueles que precisam partir diretamente para a linha de frente – trabalhadores da saúde, entregadores de aplicativo, motoristas de ônibus etc –, colocando a própria vida em risco e a da família. Podemos dizer que a pandemia não é democrática para todos?
DD –
– Vivemos em um mundo capitalista. Entramos na pandemia com essa realidade e sairemos assim dela. Então, os defeitos de antes da crise serão também aqueles posteriores. Trata-se de um mundo em que a economia derrotou a política. As finanças derrotaram a economia. As agências de risco derrotaram as finanças. Neste contexto, todos os defeitos do neocapitalismo e do neoliberalismo foram ressaltados com a pandemia. As lojas que vendiam itens de luxo, por exemplo, se tornaram mais ricas. O neoliberalismo é o pensamento econômico universal que reina no mundo de hoje e impõe as regras para tudo. Porém, essas regras ignoram o destino dos mais pobres. Há 10 anos, 335 pessoas concentravam toda a riqueza de metade da humanidade, o equivalente a 3,5 bilhões de pessoas. Hoje, tal número se reduz para 8 pessoas que detêm essa riqueza, considerando que, atualmente, meia humanidade corresponde a 3,6 milhões de pessoas. No momento, os ricos estão espalhados por todo o planeta. Pense que a cidade com o maior número de bilionários no mundo é Pequim, não é New York, que está em segundo lugar. Nunca poderíamos imaginar que uma cidade comunista pudesse ostentar esse título. Mas, agora, isso acontece porque o neoliberalismo está em todos os lugares, inclusive, em países comunistas como a China.
JI – Vivemos um período em que somos bombardeados de notícias negativas, tensão, medo e temos muito tempo em casa. Neste contexto, qual é o modo mais adequado para praticar o ócio criativo?
DD
– Nesta pandemia, o ócio criativo e o smart working são os dois grandes vencedores. A esta altura, todos já entenderam a importância de desestruturação do tempo e do espaço. Existe liberdade e flexibilidade para escolher o melhor lugar e hora de trabalhar. Agora, também há muito tempo para o nosso ócio, porque os “movimentos pendulares” de ida/volta do trabalho foram eliminados. Isso nos permite, ao longo do dia, combinar trabalho, estudo e lazer com a vida familiar e social. E isso é ócio criativo. Acredito que a pandemia permitiu que as pessoas entendessem melhor o conceito de ócio criativo e continuem praticando mesmo depois que tudo passar.
JI – Áreas como estética e limpeza urbana não se enquadram no teletrabalho. Mesmo o setor produtivo das fábricas ainda depende de mão de obra humana. Neste contexto, pode-se dizer que a pandemia chegou antes da evolução tecnológica de que precisávamos?
DD
– É preciso lembrar que nem todos os serviços podem ser realizados remotamente. Trabalhadores de fábrica ainda não se enquadram nesta modalidade. O smart working é a primeira revolução tecnológica que não diz respeito a operários, mas sim a uma categoria de trabalho cognitivo e intelectual. E, nestes, nem todos podem fazer teletrabalho, como um médico-cirurgião, por exemplo. Na Itália, sobre 23 milhões de trabalhadores, creio que apenas 5 ou 6 milhões possam trabalhar remotamente. Destaco que o smart working é facultativo, não é obrigatório. É uma modalidade que não precisa ser full time. Pode ser realizada duas ou três vezes por semana e, quando o trabalhador quiser voltar a trabalhar presencialmente, também pode fazer isso livremente. Portanto, deve ser um acordo realizado entre a empresa empregadora e o empregado. Neste sentido, creio que cerca de 20% do público possa trabalhar com teletrabalho.
O "egoísmo dos ricos" acentua a pandemia
JI – A pandemia está passando por várias fases em todo o mundo. Nos Estados Unidos e na Europa, as pessoas estão começando a voltar à rotina. No Brasil e na Índia, a situação ainda é muito complicada. O senhor acha que falta muito tempo para voltar ao normal? Qual será a aparência deste "novo normal"?
DD –
– Falta muito para chegar à nova normalidade, porque os ricos são egoístas, mas não são inteligentes. A pandemia é um fenômeno global. Portanto, estaremos em paz com esta situação apenas quando todo o mundo estiver vacinado. Neste momento, apenas 10 países sobre 196 têm a vacina. Isso quer dizer que, em 186 países, o vírus vai gerar variantes que voltarão aos países ricos, onde as vacinas não serão capazes de combater aquelas variantes. Este modo de enfrentar a pandemia é a máxima demonstração de imbecilidade dos ricos. Ao fortalecer o próprio egoísmo, eles não se dão conta da loucura que estão criando. Por exemplo, recentemente, antes de explodir a guerra de Israel, este mesmo país fez uma grande festa para celebrar a marcar de 100% de toda sua população vacinada. Eles não perceberam que todos os países que fazem fronteira não estão vacinados. É inútil festejar se todos os países ao redor estão sujeitos à doença.
JI – Neste caso, podemos dizer que falta uma consciência de coletividade para todos?
DD
– O pensamento dominante de hoje é o neoliberal, que surgiu com Adam Smith, no livro “A riqueza das nações”, publicado no fim dos século XVIII, base de toda a economia neoliberal. Propaga a ideia de que o ser humano, em economia, é egoísta e defende somente seus próprios interesses. Partindo do pressuposto do egoísmo, e não da solidariedade, é óbvio que só poderíamos chegar aos excessos atuais. É um cenário em que as desigualdades aumentam. As desigualdades normalmente crescem em momentos críticos, como em guerras e pandemias, dos quais os ricos saem mais ricos, e os pobres saem mais pobres.
JI – Quais conselhos o senhor daria aos cidadãos comuns e aos governantes?
DD
– Há um livro que pode nos ensinar muito sobre este momento, que se chama “A peste”, de Albert Camus. A história conta que, um dia, a cidade de Orã, na Argélia, é invadida por ratos, cada vez em maior quantidade. As autoridades não sabem o motivo desta invasão e, a certo ponto, as pessoas começam a morrer. Então, eles percebem que aqueles ratos haviam trazido uma peste para lá. Mulheres e crianças são mandadas para longe da cidade, que passa por uma espécie de lockdown. A história é narrada por um médico chamado Rieux, que se dedica de corpo e alma para salvar o máximo possível de pessoas, mesmo depois de perder sua mãe e seu melhor amigo para a peste. O livro mostra uma diversidade de comportamentos humanos diante da desgraça: alguns egoístas; outros generosos; outros infantis. Após atingir um nível de contaminação de rebanho, a peste desaparece. Os ratos vão embora. As pessoas não morrem mais. Mulheres e crianças voltam para a cidade e explode uma grande sensação de festa. Mas Rieux não tem coragem de comemorar. Ele ainda sofre pelas pessoas amadas que viu morrer e se isola em sua casa. Como médico, ele sabia que aquela alegria estava ameaçada. Sabia o que a multidão ignorava: o vírus não morre nunca. Ele espera pacientemente no quarto, na sala, nas malas e, algum dia, despertará os ratos e os mandará matar uma cidade feliz. Creio que esta história serve para lembrar a pessoas comuns e aos governantes que o ser humano é frágil. Ele pode ser o rei do universo, mas não é um rei que pode evitar a morte. Precisamos estar cientes desta fragilidade.
A tragédia das mortes no Brasil e a meta de vacinação da Itália
JI – Qual aprendizado a pandemia trouxe para o Brasil?
DD –
– No Brasil, a pandemia mostrou a importância da democracia. Provou que a falta de democracia pode gerar muitas mortes excedentes. Acompanhando as notícias daí, é possível perceber quantas mortes ocorreram a mais, devido à incompetência de quem toma as decisões. É preciso não esquecer que, mesmo na pandemia, a democracia é muito melhor do que a ditadura.
JI – O negacionismo ainda é forte no Brasil...
DD
– Vocês têm um governo negacionista. Isso acaba colocando a população em condições piores. A Itália também tem uma corrente negacionista, mas o governo se preocupou mais com as orientações da ciência. É uma pena a situação dos brasileiros, porque o Brasil é um país incrível, inteligente, culto, humano, solidário, alegre. É um país que não merece a morte.
JI – Parece que, na Itália, a vida começa a retomar a normalidade?
DD
– Sim. Estamos vacinando 600 mil pessoas por dia. A previsão é que, até final de junho, a gente chegue a 70% de pessoas vacinadas.
JI – Agradecemos sua disponibilidade para esta entrevista e esperamos reencontrá-lo em breve, em Curitiba, quando a situação estiver mais estável...
DD
– Certamente. Gosto muito de Curitiba, onde tinha uma grande amizade com Jaime Lerner. Na verdade, nos conhecemos em um congresso na Itália. Na ocasião, participamos de um evento realizado no belíssimo auditório da cidade de Ravello, projetado por Oscar Niemeyer. Quando viu o auditório, Lerner sugeriu a Niemeyer que projetasse algo parecido para Curitiba. Então, a ideia do Museu Oscar Niemeyer (MON) nasceu na Itália. Oscar Niemeyer era um amigo muito querido. Ele me presenteou com o projeto do auditório de Ravello. Quer coisa mais preciosa? Também tive o privilégio de vê-lo projetando o MON quando estava no estúdio dele, em Brasília. Depois, visitei o MON pessoalmente duas vezes, guiado por Jaime Lerner, em Curitiba. É uma construção belíssima.